A criação do trabalho temporário na área rural, antecipada ontem pelo ministro do Trabalho e Previdência José Carlos Oliveira durante café da manhã, é vista com cautela por especialistas e trabalhadores, que avaliam representar uma perda de direitos no campo ao instituir que uma empresa seja responsável pela intermediação da mão de obra rural. Atualmente, esses trabalhadores têm a possibilidade – assegurada em leis – de firmar contratos diretamente por safra e também trabalhar como temporário, mas na nova regra, a ser anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro na próxima semana, isso deixará de existir. Empresas e cooperativas, segundo Oliveira, serão as responsáveis pelo recrutamento do serviço nas propriedades rurais e pela intermediação dessa mão de obra responderão judicialmente pelos trabalhadores, e não os produtores rurais.
Ainda conforme antecipado pelo ministro, os trabalhadores passariam a contribuir para a Previdência e terão direitos trabalhistas assegurados de forma proporcional. Não ficou claro, no entanto, como seria feita essa contribuição e a proporcionalidade.
Para o advogado Leandro Madureira, “qualquer tipo de alteração que intente desresponsabilizar o tomador de serviço quanto ao prestador de serviço implica em precarização de direitos e, por conseguinte, precarização de trabalho”.
— É importante destacar que o trabalho no campo que se pretende terceirizar não é aquele oriundo dos segurados especiais, dos agricultores envolvidos em agriculturas familiares ou aquele que intenta somente seu sustento, mas o empregado rural, vinculado a empresas de médio e grande porte, fortemente relacionado ao agronegócio — explica Madureira, que adverte “que essa modalidade de serviço padece de dificuldades maiores de fiscalização em relação ao trabalho urbano, não sendo incomum que diversos trabalhadores sejam contratados de maneira informal, sem qualquer vínculo e, até mesmo, sejam mantidos em situações análogas à escravidão”.
Contratação direta
Cabe ressaltar que o trabalho temporário no campo já existe, mas a nova medida a ser anunciada pode mudar essa relação. Isso porque a introdução de uma empresa prestadora de serviço significaria que esse trabalhador não estaria vinculado ao empresário do campo, mas a uma empresa que “venderia” mão de obra temporária.
— O trabalho por safra ou o trabalho por temporada, como a pesca, por exemplo, é normal nesse tipo de atividade, mas a contratação sempre foi direta, na relação entre empregador e empregado. Hoje em dia esse trabalhador seria contratado por safra, de maneira direta. Com a intermediação de uma empresa, o governo diz que pretende eliminar os “gatos”, mas ainda não temos o texto da lei ou da Medida Provisória para entender como isso seria feito — avalia o advogado.
Para ele, a ideia de introduzir o trabalho temporário pode resultar em precarização da mão de obra e desemprego.
— A contratação por safra implica em dificuldade de vinculação desse trabalhador em períodos de estiagem, o que pode resultar em desemprego, a depender do tipo de trabalho e da região que esse trabalhador exerça seu trabalho — acrescenta Madureira.
Especialista alerta sobre a perda de rendimento para o trabalhador no campo em época de estiagem
Contribuição previdenciária.
O advogado pontua que com períodos de contribuição formalizados e períodos sem contribuição, esse trabalhador tende a ficar com tempos sem recolhimento junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), o que impactará na sua aposentadoria e na sua proteção social.
— A terceirização implica, necessariamente, em precarização do trabalho e pauperização do trabalhador. Se o trabalho no campo passa a ser contratado de maneira indireta, o trabalhador estará à mercê das empresas intermediadoras, o que implica em incapacidade de organização da classe trabalhadora, redução do valor da mão de obra, restrição de direitos coletivos e maior flexibilização das regras de trabalho. Entre a empresa contratante e a empresa contratada, o lucro está sempre acima do trabalho — afirma Madureira.
Trabalho por safra
Vale lembrar que o contrato por safra era previsto no Decreto 73.626, de 1974. Mas ele foi revogado e substituído pelo Decreto 10.854, de 2021, que no artigo 97 prevê que “o empregador, expirado normalmente o contrato de safra, deverá pagar ao safreiro, a título de indenização do tempo de serviço, o valor correspondente a um doze avos do salário mensal por mês de serviço” e que “será considerada como mês completo a fração superior a quatorze dias”.
Ao que o professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP), Hélio Zylbertsajn, acrescenta:
— Nenhum trabalhador pode receber menos que o salário mínimo, hoje em R$ 1.212 — afirma Zylbertsajn.
Sobre a terceirização no campo, o professor afirmou que prefere aguardar a publicação da nova norma para avaliar os impactos no trabalho rural.
Legalização dos ‘gatos’
A juíza do Trabalho Aline Leporaci avalia que a medida a ser anunciada é uma forma de “legalização do gato por intermédio da terceirização no setor, já que as empresas acabariam contratando os boias frias para atuar como trabalhadores terceirizados”. O diferencial, segundo a magistrada, esses trabalhadores seriam empregados registrados com os direitos trabalhistas assegurados de forma proporcional.
Ela pontua que a lei de trabalho temporário (Lei nº 6.019/74) permite a contratação de pessoas físicas por uma empresa de trabalho temporário, que colocará tal mão de obra à disposição de empresas tomadoras de serviços.
— Apenas por essa definição legal, a proposta do governo já iria de encontro ao que consta na lei mencionada, já que permite que empresas façam tal contratação de forma genérica, desde que esteja no período de safra — avalia a magistrada, que faz parte da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 1ª Região (Amatra1).
— A vantagem para o trabalhador seria a contribuição para o INSS no período, e os direitos trabalhistas de forma proporcional, conforme o tempo de prestação de serviços. Por outro lado, acredito que a proposta de forma genérica, em que permite que qualquer empresa faça essa contratação, vai de encontro ao próprio texto da Lei 6.019, e acaba desvirtuando o objetivo da lei. Além disso, permitir essa contratação acaba enfraquecendo a contratação direta a prazo indeterminado, que é a regra e objetivo do Direito do Trabalho — finaliza.
Confederação teme perda de direitos
O trabalho temporário no campo já existe e é regulado pela lei 11.718. A luta pela formalização não passa pela retirada de direitos, passa por um sistema de fiscalização forte e de orientação aos empregadores, avalia a Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar).
— Essa medida é uma excrecência, é mais uma estratégia equivocada de entender que resolve o problema da formalização renunciando direitos. Existe a lei 11.718 de 2008, que prevê a possibilidade para empregador pessoa física utilizar o contrato de curta duração. Ele dispensa a carteira assinada, mas exige a formalização do contrato de trabalho. Mas ele mantém intocáveis as disciplinas relacionadas a exames admissionais e demissionais. Na verdade, essa medida é mais uma desculpa para tirar direitos dos trabalhadores — avalia Carlos Eduardo Chaves, da Contar.
— Hoje as relações de trabalho rurais têm vários contratos temporários de trabalho, como contrato de safra, de experiência, de curta duração, que pode ser utilizado pelo empregador pessoa física, e principalmente para o pequeno produtor rural, que é quem tem mais dificuldade de formalizar — afirma.
De acordo com a confederação, 34% das pessoas que trabalham no campo ficam de 1 a 3 meses; 53% de 0 a seis meses e somente 25% ficam mais de um ano no campo. Procuradas, a Confederação Nacional de Agricultura (CNA) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) não se manifestaram. Já o Ministério da Previdência e Trabalho informou que a proposta está em fase de construção.